Dosier: Gestualidad en el teatro griego antiguo.
Los gestos y el cuerpo en el texto y en la escena
Do coro à orquestra, da orquestra para o coro: A gestualidade dramático-musical segundo Richard Wagner
Resumo:
O compositor e dramaturgo Richard Wagner (1813-1883) empreendeu um gigantesco projeto de recepção da dramaturgia no teatro grego antigo. Tomando por base o espaço cênico em que as peças de Ésquilo, Sófocles e Eurípides apresentaram em seus textos, Wagner propõe a transferência das funções do coro na orquestra para a orquestra como um coro. Em sua descrição dessa transferência no livro Opera e Drama de 1851, Wagner qualifica a orquestra de músicos como um corpo articulado com falas e gestos. Neste artigo, será apresentada a analisada essa proposta de Wagner, para qual o conceito de orquestra-coro-gesto pode clarificar procedimentos de recepção da dramaturgia ateniense antiga. Como estamos diante de uma tradição descontínua, fragmentária, soluções criativas na recepção não se reduzem ao seu contexto imediato de encenação. No caso de Wagner isso é mais evidente: houve por parte do dramaturgo musical alemão a intensa produção de ensaios e reflexões, principalmente em torno do projeto do Anel do Nibelungo. Desse modo, as decisões criativas propostas por Wagner dialogam com uma mediação histórica que ao mesmo interpela os dados parciais da tradição e os redefine em nova abordagem de encenação.
Palavras-chave: teatro grego antigo, recepção, gestualidade, Richard Wagner.
From the Chorus to the Orchestra and Vice-versa: Dramatic-musical Gesture according to Richard Wagner
Abstract:
Composer and playwright Richard Wagner (1813-1883) undertook a gigantic project to receive the dramaturgy of ancient Greek theater. Taking as a basis the stage space in which the plays of Aeschylus, Sophocles and Euripides presented their texts, Wagner proposed transferring the functions of the chorus in the orchestra to the orchestra as a chorus. In his description of this transfer in Opera and Drama (1851), Wagner describes the orchestra of musicians as a body articulated with speech and gestures. This article will present and analyze Wagner's proposal, for which the concept of orchestra-chorus-gesture can clarify procedures for the reception of ancient Athenian drama. As we are dealing with a discontinuous, fragmentary tradition, creative solutions in reception are not limited to their immediate staging context. In Wagner's case, this is even more evident: the German musical playwright produced intense essays and reflections, especially around the Ring of the Nibelung project. In this way, Wagner's creative decisions dialog with a historical mediation that both addresses the partial data of tradition and redefines them in a new staging approach.
Keywords: Ancient Greek Theater, Reception, Gesture, Richard Wagner.
1. Preliminares1
Em carta aberta para o compositor francês Hector Berlioz (1803-1869), publicada em 22/02/1860, Richard Wagner (1813-1883) expõe o horizonte de suas opções estéticas:
busquei meu ponto de partida na Grécia antiga. Lá encontrei pela primeira vez o trabalho artístico por excelência, o drama, no qual a ideia, por mais sublime ou profunda que seja, pode ser expressa com a maior clareza e da forma mais universalmente inteligível. Hoje, com razão, ficamos surpresos com o fato de que trinta mil gregos puderam acompanhar a apresentação das tragédias de Ésquilo com interesse sustentado;2 mas se procurarmos os meios pelos quais esses resultados foram obtidos, descobriremos que foi pela aliança de todas as artes trabalhando juntas para o mesmo objetivo, ou seja, a produção da mais perfeita e única obra artística verdadeira.3 Isso me levou a estudar as relações entre os vários ramos da arte e, tendo compreendido a relação entre a arte plástica e a mímica, examinei a relação entre a música e a poesia. Percebi que, exatamente onde uma dessas artes atingia limites intransponíveis, a esfera de ação da outra começava imediatamente com a mais rigorosa exatidão; que, consequentemente, por meio da união íntima dessas duas artes, seria possível expressar com a mais impressionante clareza o que cada uma delas não poderia expressar isoladamente; que, ao contrário, qualquer tentativa de representar com os meios de uma das duas o que só poderia ser representado pelas duas juntas levaria inevitavelmente à obscuridade, à confusão em um primeiro momento e, depois, à degeneração e à corrupção de cada arte em particular. (Wagner, 1860, p. 2)
Como se pode observar, Wagner enfatiza seu vínculo com a dramaturgia ateniense antiga, especialmente na compreensão das complexas relações entre meios e tradições artísticas distintas. Para prover um espetáculo impactante para uma massiva audiência, também essa dramaturgia explorou a diversidade de meios e tradições artísticas de modo igualmente intenso, pleno. O desafio está em integrar sem anular as diferenças, explorar as tensões da materialidade heterogênea. Wagner indica que foi por meio do estudo dos meios e das artes que pode compreender como essa dramaturgia operava em sua efetividade. Isso o levou, a músico e libretista que era, a estudar outros modos de produção de percepção, como “arte plástica e a mímica”. Tendo se aprofundado na relação entre a visualidade e os gestos, pode então se deter no seu campo de atividades, a poesia e a música.
Assim, nessa sintética apresentação do que o levou a empreender uma revolução estética na dramaturgia musical do século XIX, Wagner traz para o primeiro plano o pressuposto de que a dramaturgia ateniense antiga era organizada em sua multissensorialidade, e a compreensão dessa multissensorialidade capacita a produção de novos empreendimentos potentes em seus meios e efeitos.
Estrategicamente, no texto da carta, a relação entre visualidade e gesto situa-se em destaque: de início, são as primeiras artes nomeadas, antes de música e poesia, invertendo uma expectativa de confirmação no que se refere a algo mais conhecido como dramaturgia musical, ou nexo linear entre a partitura e página do libreto; em sequência, já a partir desse estranhamento ou inversão valorativa, o esclarecimento do domínio visual torna-se condição para o esclarecimento do domínio acústico, ratificando que a inversão de posição ou expectativa não se desdobra em uma nova hierarquia, e sim que há transferências, jogos, passagens entre os domínios. O gesto transita para a música, a poesia transita para a plástica. Wagner acentua um vocabulário de confluências –‘união’, ‘aliança’, ‘as duas juntas”. E isso, para Wagner, ontem e hoje, chama-se ‘drama’.
A hipótese desse artigo é a seguinte: a dramaturgia de Richard Wagner após o período de Dresden (1842-1849) passa a aprofundar questões de recepção da dramaturgia ateniense antiga. Nesse aprofundamento, Wagner desenvolve o projeto da tetralogia do Anel do Nibelungo que não é apenas uma versão do passado: há uma série de inovações que geram deslocamentos quanto ao modelo ateniense. Como a dramaturgia antiga chegou para Europa de forma descontínua e fragmentária, tais deslocamentos ao mesmo tempo tanto promovem novos diálogos com a tradição multissecular de se propor espetáculos dramático-musicais, quanto indicam possibilidades de se interpretar essa tradição. Mais exatamente, no caso de Wagner, dentro do escopo desse dossiê sobre gestos no teatro antigo, a volumosa produção textual em torno do projeto do Anel apresenta uma argumentação que tanto justifica a nova dramaturgia de Wagner quanto aponta para outras formas de se compreender realização e performance no modelo dramatúrgico ateniense. E, nesse contexto, Wagner vale-se significativamente do conceito de gesto.
Relevante para nossas considerações é o conjunto de obras teóricas escritas por Wagner logo após seu exílio, fugindo de Dresden.4 Em Dresden, Wagner havia encontrado um contexto de produção mais contínuo, com um teatro, orquestra e cantores à sua disposição. Nesse contexto, ele passa a formar uma biblioteca composta, entre outras coisas, por obras clássicas, com traduções e edições comentadas das obras de Homero, Ésquilo, Sófocles, Eurípides, Aristófanes, Platão, Aristóteles, Plutarco, Heródoto, Tucídides, Horácio, Virgílio, por exemplo. Junto disso, temos pesquisas e edições críticas de obras medievais nórdicas, germânicas e outras, como o Edda, Gesta Romanorum, Nibelungenlied (Canção dos Nibelungos), e os textos de Hartmann von Que, Hans Sachs, Wolfram von Eschenbach, Gottfrieds von Strassburg, Saxo Grammaticus.5 Desses autores e obras viriam todas as futuras óperas de Wagner. Nesse momento, Wagner se aproxima muito da filologia, que, na época amplia seu espectro, envolvendo temas de História, Filosofia e Artes.6
Com a fuga para a Suíça, e sem um contexto de produção de óperas, Wagner parte para escrever intensamente. São nos escritos de Zurique, especialmente A obra de Arte do Futuro, de 1850 e Ópera e Drama, de 1851, que se expressa a transformação em Wagner de temas de recepção dos clássicos, em especial da dramaturgia ateniense antiga. Se em A obra de Arte de Futuro a Grécia ainda é um topos de filo-helenismo associada a um momento de auge da cultura, em Ópera e Drama há uma seleção de características associadas aos gregos as quais são utilizadas para justificar a proposta Wagneriana. Entre elas avoluma-se a questão da gestualidade.
Destaca-se para a discussão da gestualidade em Wagner e sua compreensão a partir da recepção do drama antigo a terceira parte do livro Ópera e Drama, intitulada de “Poesia e música no drama do futuro”. Nesta parte do livro, Wagner irá enfim apresentar a sua teoria de uma obra do futuro, que é uma obra na fronteira entre diversas tradições artísticas, a partir de uma transformação do modelo ateniense clássico.
Em sua argumentação Wagner agrupa os seguintes procedimentos:
o drama grego antigo é o horizonte para as novas realizações que busquem uma compreensão integral das artes;
o coro grego é o centro da experiência estética do drama antigo;
para que a moderna compreensão integral das artes na dramaturgia do futuro se realize é preciso transferir as ações do coro para a orquestra;
a orquestra assume atos de um agente dramático em cena: possui linguagem, gestos e movimentos.
2. No princípio foi a dança
O contexto dessa organização dentro da estrutura da terceira parte do livro Ópera e Drama é reveladora: Wagner inicia sua proposta agindo como um filólogo, ao discutir metrificação, acentuação e rimas, para, então, discorrer sobre formação de melodia. Há, pois, neste momento, claramente a preconização da palavra como matéria e referência para a teoria wagneriana.
Isso se justifica em função do trabalho de uma dramaturgia ampliada, que reivindica a produção conjunta de textos e música para sua efetivação. Homólogo aos seus dramaturgos da antiguidade, Wagner provê o libreto e a música de suas obras. A preocupação com a materialidade da palavra em Ópera e drama registra desde já a diversidade material do drama do futuro a partir do drama do passado.
Contudo, um segundo estranhamento: se os temas de linguagem são inseridos na abertura de um capítulo de obra na qual se colocam as bases do novo drama musical, esses temas de linguagem são tratados em situação de performance. Ou seja, questões abrangidas pelos estudos da linguagem são mobilizadas para além dos estudos da linguagem da época. Wagner se vale de tópicos filológicos em função do projeto de uma nova dramaturgia que está propondo.
Chave para esse interesse na métrica e na prosódia é o fato de tais conhecimentos terem sido desenvolvimentos tanto na transmissão dos textos da Antiguidade quanto na investigação e ensino das línguas modernas europeias. O que Wagner aqui ataca é a imitação desses conhecimentos, reduzidos a fórmulas e tornados esquemas na aprendizagem de línguas e na realização de versos:
Na métrica do verso, os poetas da Idade Média ainda se referiam definitivamente à melodia, tanto em termos do número de sílabas quanto, em particular, da acentuação. Depois que a dependência do verso de uma melodia estereotipada, com a qual estava conectado apenas por um vínculo puramente externo, degenerou em pedantismo servil - como nas escolas dos Mestres Cantores [Meistersinger]-, em tempos mais recentes um metro de verso totalmente independente de qualquer melodia real foi criado a partir da prosa, tomando como modelo a construção rítmica do verso dos latinos e gregos - como a temos agora diante de nossos olhos na literatura. As tentativas de imitar e se apropriar desse padrão foram, a princípio, baseadas no que havia de mais similar e aumentaram tão gradualmente que só pudemos perceber plenamente o erro subjacente quando, por um lado, chegamos a uma compreensão cada vez mais profunda do ritmo antigo e, por outro, nossas tentativas de imitá-lo nos levaram a perceber a impossibilidade e a inutilidade dessa imitação. Agora sabemos que o que produziu a infinita variedade de métricas gregas foi a inseparável cooperação viva do gesto da dança com a linguagem da palavra e da música [der Tanzgebärde mit der Ton-Wortsprache], e que todas as formas de verso que surgiram a partir disso foram condicionadas apenas por uma linguagem que se formou sob essa cooperação de tal maneira que somos quase incapazes de compreendê-las em sua peculiaridade rítmica a partir de nossa linguagem, cujo motivo de formação foi bem diferente. (Wagner, 2008, p. 249)
Nesta longa citação do início da terceira parte de “Ópera e Drama” encontramos encenada a própria situação de Wagner:
havia uma produção músico-performativa que entrou em decadência;
padrões métricos greco-latinos eram aplicados a esta produção;
a aplicação desses padrões métricos redutivos gerou convencionalismos, esgotando-se;
começou-se a compreensão da diversidade métrica desses padrões;
e, disso, a abertura para novos experimentos.
Wagner percebe um recorrente ciclo em que se se alternam movimentos de saturação, ruptura e renovação das práticas versificatórias em razão das tensões entre contexto performativo interartístico e redução dessas práticas a esquemas abstratos. Em nosso caso está a associação entre a “compreensão mais profunda do ritmo antigo” e “cooperação viva do gesto da dança com a linguagem da palavra sonora”. É nesse ponto que a questão do gesto em Wagner começa a ser percebida.
No detalhe da letra, vemos que o gesto não está isolado e sim vinculado à dança. Não se trata ainda de outro gesto senão aquele movimento do corpo dentro de uma atividade expressiva, organizada, que explora as potencialidades físicas em situação de performance.
Retomando a argumentação de Wagner, gesto e dança, pois, comparecem unidos como que opostos e complementares à “linguagem da palavra e da música”. Para o projeto de renovação da dramaturgia musical de seu tempo a partir da revisitação da dramaturgia ateniense antiga, Wagner postula um paradigma que integra artes e mídias. Temos, pois, inputs e outputs (estímulos/percepções) sonoros e visuais relacionados a tradições artísticas da dança, da literatura e da música dentro de um contexto maior que é a performance. A questão do gesto entra em Wagner como via de acesso à amplitude da performance multissensorial do drama antigo que, compreendida em sua efetividade, passa a ser modelo para suas reatualizações. O que bloqueia o acesso tanto à complexidade do passado quanto à criatividade atual reside em um entendimento equivocado da separação entre corpo e dramaturgia.
A esquematização métrica identificada por Wagner diz respeito ao afastamento das conexões entre palavra, movimento e som. É possível elaborar obras que partam desse afastamento, que expressem essa separação entre aspectos diversos e simultâneos do corpo em cena. Mas o que Wagner procura é justamente uma prática composicional que leve em consideração uma corporeidade absoluta reconstruída em performance pelos meios/mídias à sua disposição.
Assim, um capítulo marginal dos estudos clássicos –métrica– torna-se ao mesmo tempo a pedra que destrói a maravilhosa construção que ergue sistemas classificatórios de distribuição de etiquetas e sílabas e que fundamenta a identificação da multiplicidade rítmica do drama antigo, multiplicidade impulsionadora do novo drama.
Retomando: em sua apropriação do passado, Wagner defende o papel central da corporeidade na cultura grega antiga:
A peculiaridade da cultura grega é que ela deu tanta atenção à manifestação puramente corporal do homem que temos de considerá-la como a base de toda a arte grega. As obras de arte líricas e dramáticas eram a espiritualização do movimento dessa aparência corporal possibilitada pela linguagem, e as artes visuais monumentais eram, por fim, sua franca adoração. (Wagner, 2008, p. 250)
Porém, há uma contradição: embora a corporeidade seja a base da cultura grega antiga, embora seja a dança uma protoestética, o movimento, o gesto, acaba sendo eclipsado pelo tempo e espaço:
Os gregos se sentiram compelidos a desenvolver a arte do som apenas na medida em que ela servia para apoiar o gesto, cujo conteúdo já era expresso melodicamente pela própria linguagem. No acompanhamento do movimento da dança pela linguagem sonora das palavras, esta ganhava uma medida prosódica tão firme, ou seja, um peso precisamente equilibrado, puramente físico, para o peso e a leveza das sílabas, de acordo com o qual sua relação entre si na duração do tempo era organizada, que , contra essa determinação puramente física (que não era arbitrária, mas também para a linguagem, da propriedade natural dos sons sonoros nas sílabas raízes, ou a posição desses sons em relação às consoantes reforçadas), o acento espontâneo da fala, que também enfatiza as sílabas às quais o peso físico não atribui nenhum peso, teve até mesmo de ficar em segundo plano -um segundo plano no ritmo, que a melodia, no entanto, compensou aumentando o acento da fala. Sem essa melodia reconciliadora, no entanto, os metros da estrutura do verso grego chegaram até nós (como a arquitetura sem sua antiga o coloração), e podemos explicar a mudança infinitamente variada desses metros, menos ainda a mudança do movimento da dança, porque não a temos mais diante de nossos olhos, assim como não temos mais aquela melodia diante de nossos ouvidos. (Wagner, 2008, pp. 250-251)
Os gestos e a música de ontem cessaram. Os registros textuais e métricos não fornecem a chave de acesso aos eventos em sua completude. Resta, pois, o trabalho de interpretação, de mediação histórica. Com isso, abrem-se mil possibilidades para se correlacionar os dados limitados presentes na transmissão da cultura clássica e renovados projetos de apropriação e transformação dessa cultura.
Nessa direção temos a orquestra-coro de Wagner, na qual o tema do gesto volta a ser frisado.
3. Os gestos da orquestra
Fundamental para a proposta de novo drama de Wagner é a “coralização da orquestra”. O grupo instrumental, com suas diversas fontes sonoras/timbres, vai ocupar as funções do coro no drama antigo, torna-se um “personagente”. Em carta-prefácio a François Villot, em 1861, Wagner expõe sua contraposição entre coro e orquestra:
A relação da orquestra com o drama, a meu ver, é mais ou menos a mesma do coro trágico grego com a ação dramática. O coro estava sempre presente, os motivos da ação se desenrolavam diante de seus olhos; procurava entender esses motivos e formar um julgamento sobre a ação por meio deles. No entanto, o coro geralmente participava do drama apenas por meio de suas reflexões; permanecia alheio à ação e aos motivos por trás dela. A orquestra do sinfonista moderno, por outro lado, está intimamente envolvida nos motivos da ação; pois, enquanto por um lado, como um corpo de harmonia, somente ela torna possível a expressão precisa da melodia, por outro lado, mantém o curso interrompido da própria melodia, de modo que os motivos são sempre esclarecidos ao coração com a energia mais irresistível. Se considerarmos, e devemos considerar, que a forma artística ideal é aquela que pode ser totalmente compreendida sem reflexão e que permite que a concepção do artista passe diretamente para o coração em toda a sua pureza; se, finalmente, reconhecermos essa forma ideal no drama musical que satisfaz as condições mencionadas acima, a orquestra é o instrumento maravilhoso por meio do qual somente essa forma pode ser realizada. Em comparação com a orquestra e a importância que ela assumiu, o coro, ao qual a ópera já deu um lugar no palco, não tem mais o significado do coro antigo; agora, ele só pode ser admitido como um personagem ativo e, sempre que não for necessário nesse papel, não poderá mais se tornar nada além de um embaraço e um supérfluo; pois sua participação ideal na ação passou inteiramente para a orquestra e se manifesta ali de uma forma que está sempre presente e nunca é embaraçosa. (Wagner, 1861, p. 58)
Retomando a teoria do “coro como espectador ideal” de Schlegel, Wagner ajusta sua concepção de orquestra-coro como a de um corpo sonoro em ação, aproximando-o de uma individualidade humana: “É inegável que a orquestra possui uma capacidade de linguagem [Sprachvermögen]” (Wagner, 2008: p. 329).
Contudo, essa capacidade de construir e emitir enunciados situa-se em outro plano que o de uma pessoa que fala:
Mas, como um puro órgão do sentimento, ela [a orquestra] expressa precisamente aquilo que é em si mesmo inexprimível [Unaussprechliche] para a linguagem verbal e, de nosso ponto de vista intelectual, portanto, o inexprimível em si. [...] Vamos agora considerar primeiro o inexprimível, que a orquestra é capaz de expressar com a maior certeza, e isso em combinação com outro inexprimível -o gesto (Wagner, 2008, p. 330).
Movendo-se dentro dos limites da cultura literária e livresca de seu tempo, Wagner vai buscar no passado a imagem liberador do movimento em situação de performance para fundamentar sua proposta de um novo drama, sem as restrições formais e estilísticas que a ópera de seu tempo acatava, a partir do uso de padrões métricos prévios adaptados da métrica greco-romana. E essa imagem liberadora passa pela reimaginação do que seria o coro grego.
Wagner, quando tentar tornar compreensível esse paradoxo de a orquestra ter uma capacidade linguística como o ator, mas ser capaz de expressar algo que não é linguístico, como os gestos e as emoções, acaba por voltar-se ao coro grego:
Na expressão total de todas as mensagens do ator para o ouvido, assim como para os olhos, a orquestra assume uma parte ininterrupta, carregando e esclarecendo por todos os lados: é o útero em movimento da música, a partir do qual cresce o vínculo unificador da expressão. - O coro da tragédia grega deixou para trás seu significado emocional para o drama apenas na orquestra moderna, a fim de se desenvolver nela, livre de todo confinamento, em uma manifestação incomensuravelmente múltipla; sua aparência real, individualmente humana, no entanto, foi transferida da orquestra para o palco, a fim de desdobrar o germe de sua individualidade humana, que se encontra no coro grego, para o mais alto florescimento independente, como um participante que atua diretamente e sofre no próprio drama. (Wagner, 2008, p. 349)
Este “drama” é o Wagner busca: um amplo acontecimento que se dá na interação entre os eventos de cena e a audiência, possibilitado pela dramaturgia multissensorial. Sendo assim, pela análise do coro grego em performance na antiguidade proporcionada pelos dados de sua recepção crítica (comentários críticos e textos das tragédias), foi que Wagner promoveu a sua proposta de uma nova dramaturgia ampliada. Em outras palavras, a analítica do acontecimento performativo em sua amplitude apontou para possibilidades criativas que seriam posteriormente elaboradas e realizadas. E o que Wagner identificou no coro grego em sua performatividade?
Primeiro, Wagner trabalha com uma concepção midiática, a partir da materialidade da cena: o coro produz coisas de se ouvir e coisas de se ver: “para o ouvido, assim como para os olhos”.
Segundo, embora haja distinções perceptivas, a visão analítica deve ser suplementada por uma abordagem integrativa: tudo que acontece no drama é unificado, é uma experiência total e contínua. A presença contínua do coro assegura a referência de continuidade do evento.
Terceiro, as macrodivisões perceptivas entre o que se vê e o que se ouve e a amplitude da experiência performativa nos projetam para lógicas outras de compreensão e expressão da materialidade dramática. Por exemplo: imediatamente, o gesto aparece vinculado ao visível, assim como o som ao invisível. Essa distinção entre presença e ausência, porém, não é absoluta, pois logo o gesto, que é visível, não se completa em sua aparição. O gesto é inexprimível, Unaussprechliche, aproximando-se do trabalho do som, da orquestra. Assim, a orquestra vincula-se ora ao ator, que é visível, falante, gesticulador, ora ao coro, que canta e dança. E a orquestra passa ter as características de quem ela se aproxima. A orquestra, como o gesto inexprimível, uma não língua, uma linguagem visível, mas não verbal, passa a tornar perceptíveis “eventos-noções”:
Já deduzimos da orquestra a capacidade de despertar pressentimentos e lembranças; concebemos o pressentimento [Vorbereitung] como a preparação da aparição, que finalmente se manifesta em gestos e melodias de versos -a lembrança, por outro lado [Erinnerung], como uma derivação dele, e agora devemos determinar exatamente o que, de acordo com a necessidade dramática, simultaneamente com o pressentimento e a lembrança, preenche o espaço do drama de tal forma que o pressentimento e a lembrança foram necessários para a mais completa compreensão. (Wagner, 2008, p. 350)
A orquestra, como uma massa sonora, projeta para o palco e para a audiência coisas de se ouvir que também apontam para algo que ainda não foi plenamente apresentado ou para a retomada do já foi mostrado. O anúncio do que virá em si mesmo já é em si um acontecimento. Mas a orquestra previamente apresenta uma seleção, um fragmento, um pedaço do que vai acontecer. Assim, rompe-se com a linearidade dos eventos ao se deslocar algo de um dado momento para um momento anterior. No detalhe da letra, Wagner afirma que esse deslocamento referencial e temporal é anterior ao que é exposto pela palavra e pelo gesto em sua atualidade regular. Assim, a palavra e o gesto do ator se ligam ao tempo de agora, ao da aparição. Mas, avançando em sua exposição, Wagner aponta para atos da orquestra que lidam com o anúncio do que já aconteceu, e isso muitas vezes junto do anúncio do que ainda vai acontecer. Dessa maneira, a continuidade da cena, o fluxo dos acontecimentos é construído por uma saturação de múltiplos espaços de emergência temporal, tornando contemporâneos os extemporâneos.
Se o som dinamiza a cena em suas referências temporais e espaciais, o que acontece também na cena é dinamizado. O fato de o gesto estar ligado em um primeiro momento a seu emissor, como caracterização ou ampliação de uma ação imediata, por estar em uma complexa rede de referências expressivas, passa a adquirir novas funcionalidades.
4. Interludio: Mimomania
No contexto das artes de espetáculo do tempo de Wagner, a questão da gestualidade inserida dentro de uma dramaturgia musical precisa ser melhor esclarecida. Após ruptura com o mestre, Nietzsche em Der Fall Wagner (1889) afirma:
Wagner era mesmo um músico? Em todo caso, ele era outra coisa: a saber, um histrião incomparável, o maior mímico, o gênio teatral mais surpreendente que os alemães tiveram, nosso encenador por excelência. (Nietzsche, 1889, p. 26)
Para Nietzsche, que privou da intimidade com Wagner, a teatralidade ostensiva do compositor alemão seria a definição da identidade tanto do projeto quanto da pessoa de Richard Wagner.
Nesse sentido, sem recair na negatividade antiteatral platônica de Nietzsche, é preciso ter em mente que embora Wagner não tenha tido instrução formal e contínua em música, ele vinha de uma família de atores, expondo-se desde a infância no contato com estilo de interpretação que não distinguiam a formação de cantores e de atores.7 Segundo estudos de Martin Knust e Christina Lena Monschau declamação, recitação, mímica e gestos eram práticas de formação comuns aos intérpretes cênicos.8 Ressoa ainda a herança clássica da mímesis, compreendida em atos de personificação e incorporada na formação retórica dos tratados de Cícero e Quintiliano. Assim, para Wagner da concepção da obra até a sua apresentação para o público havia a constituição de um “roteiro mímico” no qual a corporeidade das figuras imaginadas é modelada e testada.9
A articulação entre canto, fala, gesto e movimento estava na base da formação de cantores e atores no tempo de Wagner. Elaborar dramas musicais era enfrentar essa formação, seus estilos, suas práticas. A crítica de Wagner ao trabalho com cantores de seu tempo residia na desconexão entre os atos expressivos em prol de uma gramática gestual pré-dada, a partir de esquemas da pantomima:
Essa convenção consiste em nada mais do que um arranjo de gestos, tirado da pantomima da dança, que é fisicamente condicionado pela performance do canto e que, no caso de cantores não treinados, degenera no mais grotesco exagero e crueza. Esse gesto convencional, que por si só serve apenas para ocultar completamente o sentido linguístico da melodia, só se aplica às partes do drama em que o intérprete está realmente cantando: assim que ele para de cantar, não se sente obrigado a fazer qualquer expressão adicional para o gesto. Nossos compositores de ópera passaram a usar as pausas no canto para interlúdios orquestrais, nos quais instrumentistas individuais tinham que demonstrar suas habilidades especiais ou o próprio compositor se reservava o direito de chamar a atenção do público para seu domínio de textura instrumental. (Wagner, 2008, p. 381)
Pensando no gesto, Wagner confrontou tal desconexão em seu projeto de um novo drama:
A intenção poética, como ela quer ser realizada no drama, requer a mais alta e mais variada expressão do gesto, de fato, requer sua diversidade, poder, sutileza e flexibilidade em um grau que não pode necessariamente aparecer em nenhum outro lugar, mas apenas no drama e, portanto, deve ser inventada para esse drama com uma peculiaridade muito especial; pois a ação dramática com todos os seus motivos é elevada e aumentada ao ponto de ser maravilhosa acima da vida. A concisão dos momentos de ação [Die Gedrängtheit Handlungsmomente] e de seus motivos só poderia se tornar compreensível para as emoções por meio de outra expressão condensada, que se elevasse do verso da palavra à melodia que determina diretamente a emoção. Como essa expressão agora se eleva ao ponto da melodia, ela também requer necessariamente um aumento no gesto condicionado por ela acima do nível do gesto comum da fala. No entanto, de acordo com o caráter do drama, esse gesto não é apenas o monólogo de um único indivíduo, mas um gesto que se eleva do encontro caracteristicamente relacional de muitos indivíduos até a mais alta diversidade -um gesto ‘polifônico’, por assim dizer [»vielstimmige« Gebärde]. A intenção dramática não apenas atrai o sentimento interior -em si mesmo- para o seu reino, mas, em prol de sua realização, especialmente a manifestação desse sentimento na aparência física externa dos personagens que atuam. A pantomima se contentava com máscaras típicas para a forma, a postura e o figurino dos atores: o drama todo-poderoso arranca a máscara típica dos atores -porque tem o poder justificador da fala para fazer isso- e os mostra como individualidades especiais que se manifestam exatamente dessa maneira e de nenhuma outra. A intenção dramática, portanto, determina a forma, a expressão, a postura, o movimento e o figurino do ator até o último detalhe, para que ele apareça a todo momento como essa individualidade única, rápida e definitivamente reconhecível, bem distinta de todas as outras que ele encontra. Essa drástica distinção de uma individualidade só é possível, entretanto, se todas as individualidades que a encontram e se relacionam com ela se apresentarem exatamente da mesma forma, claramente definida, com uma drástica distinção. Se agora visualizarmos a aparência de tais individualidades nitidamente definidas nas relações infinitamente mutáveis entre si, a partir das quais os múltiplos momentos e motivos da ação se desenvolvem, e se as imaginarmos de acordo com a impressão infinitamente excitante que sua visão deve produzir em nosso olho poderosamente cativado, também entenderemos a necessidade do ouvido de uma impressão que corresponda perfeitamente a essa impressão no olho e que seja, por sua vez, compreensível para ele, na qual a primeira impressão apareça suplementada, justificada ou esclarecida; pois ‘Pela boca de duas testemunhas, a verdade (completa) se torna conhecida’. (Wagner, 2008, pp. 334-335)10
O longo trecho contrapõe a redução da esfera do gesto na ópera hegemônica do tempo de Wagner, que se valia de apropriações do repertório da pantomima, e busca por dinâmicas integrativas do ‘gesto polifônico’. Nessa contraposição, temos a abertura para uma redefinição do gesto em uma obra interartística, multissensorial. A apropriação da pantomima pela ópera pode ser entendida como o extremo de uma estilização que chegou ao seu limite de aplicabilidade, passando a funcionar como recurso e convenção para libretistas, compositores, intérpretes e público.
É quando se rompe com esse ilusionismo do gesto como sinal unívoco que toda a discussão de Wagner e suas implicações se tornam pertinentes. O incremento na compreensão do gesto é uma chave de acesso para a realização do ‘drama’ em suas potencialidades, ontem e o hoje. No esquema histórico-estético de Wagner, o uso convencional dos gestos especialmente na Grand ópera francesa é um obstáculo para a irrupção das potências variacionais e infinitas do corpo cênico seja no modelo da dramaturgia ateniense antiga, seja no novo modelo que ora se propõe.
Para crescer, para promover um impulso de ampla realização, o gesto move-se integrativamente, inserindo o que é individual, isolado, invariável no jogo da heterogeneidade, do múltiplo, do movimento. Daí o gesto não é apenas a expressão pontual de uma caracterização, de um aspecto de algo, como um lado da máscara, como um adereço contingencial. O gesto é de quem o faz, da personagem; mas a personagem se relaciona com as outras figuras, com a dramaturgia, com a música, com o espaço de cena, com toda a amplitude da cena. Assim, o gesto é do ator, da personagem e também é a manifestação de outros níveis referenciais além do reconhecimento imediato de uma propriedade tipificadora.
Percebendo o limite da convencionalidade gestual na Grand ópera e suas implicações, Wagner coloca em questionamento a própria definição de gesto em obras dramático-musicais. Com isso, abre-se um caminho para se entender a gestualidade no drama grego antigo e para se produzir espetáculos com criativas formas de se explorar gestualidades.
Assim, em um século marcado por uma adesão generalizada de gestos convencionalizados, seja na cena, seja nas performances sociais, a interrogação wagneriana enfrenta ou desloca a mimomania reinante. Da redução que contém o gesto em caracterização e padrões visuais-receptivos, começa-se a perceber uma busca por outras funções para ações físicas visíveis e para a dramaturgia musical:
Como o hábito de sincronizar o movimento do palco com a música foi lentamente saindo de moda após meados do século passado, o espetáculo criado pelo corpo visível e a música que o envolvia mudou fundamentalmente. Sob essa nova ordem estética, a música poderia envolver o corpo exibido, fornecendo uma névoa sensual de som para sugerir o poder erótico; mas seus ritmos raramente traçavam ou ecoavam os movimentos reais de um artista ou duplicavam o significado de suas palavras. (Smart, 2004, pp. 4-5)
Mais que uma dicotomia entre uma arte espiritualizada, desencarnada, veículo de abstrações e outra mais dominada na funcionalidade de uma aparência imediatamente perceptível, vemos que Wagner transita entre diversos usos dos gestos. O fato de ir além da apropriação das gramáticas gestuais da pantomima contribui para trazer para o palco o tempo de expressão de acontecimentos afetivos intensos, ligados no drama grego antigo às dimensões do mito. E isso foi realizado por Wagner por meio de abundantemente trabalho de construção do roteiro gestural, de marcação das cenas, do controle quase tirânico de uma performance ideal que aproximasse os sons da orquestra daquilo que era visto no palco.11
Ou seja, paradoxalmente, Wagner, de um lado é um encenador ocupado em construir um fluxo de percepções que se manifestam pluralmente pelos corpos dos atores-cantores, pelos sons da orquestra, pela visualidade da cena. De outro, tudo o que é mostrado não se confina em sua materialidade imediata. Há algo mais. Como conjugar a física de Wagner com sua metafísica?
5. Conclusão: quais gestos?
Se o projeto de Wagner em se reconectar ao drama grego antigo o levou ao paradoxo de uma arte ao mesmo tempo espiritualizada e ostensivamente detalhista, talvez isso nos auxilie na questão da gestualidade de Ésquilo, Sófocles e Eurípides, de sua dramaturgia interartística. Mais que tentar replicar tais atualidades encenadas há uma discussão em torno de como pensar esses gestos.
Como indicado por Wagner, o núcleo da experiência sensorial e afetiva do drama grego antigo residia no coro:
Assim como no teatro de ópera italiano, toda a pretensão de arte vinha da antiguidade academicamente incompreendida, a orquestra e o palco que se erguia atrás dela não faltavam. A introdução ou ritornello soava da orquestra, como o chamado de um arauto convidando ao silêncio; o cantor aparecia no palco com o traje do herói e, acompanhado pelos instrumentos, executava sua ária. Com grande distorção, essa convenção ainda mostra o arranjo do teatro antigo, do qual preservamos claramente a orquestra como o elo intermediário entre o público e o palco. Nessa posição, a orquestra está inegavelmente destinada a mediar a idealidade da peça no palco; e aqui reside a profunda diferença entre esse teatro e o teatro de Shakespeare, no qual a realidade da peça apresentada nua e crua no palco só poderia ser preservada em uma esfera mais elevada de participação ideal por parte da plateia por meio da mais engenhosa mímica. A orquestra do teatro antigo, por outro lado, é a fonte real de magia, o útero do drama ideal, cujos heróis, como foi corretamente observado, realmente só se revelam a nós no palco, na superfície, enquanto a magia que emana da orquestra e é dirigida por ela só é capaz de preencher, na mais exaustiva riqueza, todas as direções concebíveis nas quais aquela individualidade que aparece ali poderia de alguma forma se manifestar. Se considerarmos agora o significado que a orquestra moderna adquiriu a partir daqueles magros primórdios da ópera italiana, poderemos tirar conclusões justificadas sobre seu propósito mais elevado para o drama.
Na orquestra antiga, quase completamente cercada pelo anfiteatro, o coro trágico ficava como se estivesse no coração da plateia: suas canções e danças acompanhadas por instrumentos levavam a multidão de espectadores ao entusiasmo com que o herói, agora aparecendo no palco com sua máscara, afetava a plateia clarividente com a veracidade de uma aparição fantasmagórica. (Wagner, 1872, p. 236)
O coro na orquestra fazia a mediação de acontecimentos multiplanares: a atualidade da encenação, o mundo representado, tempo-espaço da época e os sinais das manifestações de potências cosmobiológicas.12 Para Wagner, no lugar de trazer os coros para cena, ele coralizou a orquestra, a orquestra passando a ocupar as funções do coro. E ainda mais: a orquestra se inviabiliza: no teatro especialmente escolhido para as apresentações do Anel do Nibelungo em Bayreuth, a orquestra é coloca em um fosso, é oculta.
Em parte, tal resolução retoma uma utopia asséptico-individual, como idealizada por Goethe:
Ele não conseguia viver sem música, especialmente sem cantar, e tinha a peculiaridade de não querer ver os cantores. [...]. Da mesma forma, ele também queria que a orquestra ficasse oculta o máximo possível na música instrumental, porque os esforços mecânicos e os gestos improvisados e sempre estranhos dos instrumentistas eram muito perturbadores e confusos. Portanto, ele costumava ouvir música com os olhos fechados para concentrar todo o seu ser no único e puro prazer da escuta (Goethe, 1796, pp. 330-332)13
Mas a invisibilidade da orquestra relaciona-se a algo que ultrapassa o indivíduo: em conversas com o arquiteto Gottfried Semper (1803-1879), Wagner denomina esse fosso de ‘abismo místico’ [mystischer Abgrund]:
uma imagem transportada da inatingibilidade de um fenômeno onírico: a música fantasmagórica que ressoa do ‘abismo místico’ -assim como os vapores ascendentes do ventre sagrado de Gaia sob o assento da Pítia- [que] transpõe [o espectador] para aquele estado de clarividência encantado no qual a imagem cênica agora se torna a cópia mais verdadeira da própria vida (Wagner, 1873, p. 24)14
A verticalidade da imagem adotada por Wagner nos reintroduz na estratégia de relatar o acontecimento de agora (Bayreuth) com o antecedente mítico de outrora (Delfos). Aqui há uma operação mais radical –o alvo do modelo não é o Teatro de Dioniso em Atenas, mas o espaço de cerimônias de uma dramaturgia hierática. A performance multissensorial dos agentes dessa dramaturgia foi bem configurada por Heráclito em duas sintéticas cenas:
E a Sibila, com lábios delirantes, a proferindo coisas sem graça, sem floreios e sem perfume, alcança mais de mil anos com sua voz, graças ao deus que há nela [B92]
O senhor cujo oráculo está em Delfos não fala nem esconde seu significado, mas dá um sinal [B93].
Entre a Sibila, em seu excesso midiático, e Wagner transcorre aquilo que o coro na orquestra indica e o teatro reverbera: uma massiva experiência multiplanar que não se reduz a um único canal de percepção e recepção e que tem na intuição do divino o parâmetro de sua configuração e efeito, especialmente no acontecer-síntese de desmedida emocionalidade.
Referências
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Notas
Recepción: 07 Marzo 2024
Aprobación: 12 Abril 2024
Publicación: 01 Junio 2024